segunda-feira, março 19, 2012

Tudo o que é vivo, morre

Uma notícia de morte sempre me transforma um pouco. Essa ideia de finitude parece que não faz parte do dia a dia enquanto se é jovem, enquanto se está saudável e com tantos planos esperando o momento de concretização. É o mestrado que está começando, a dieta que funciona, as aulas a preparar, o show do fim de semana, o amor que ainda não sentiu, os filhos que ainda não teve,  a casa que quer decorar, os lugares que ainda vai visitar. Tudo faz parte do que está por vir. Da vida que está por vir. Nunca se espera pela morte. Pelo menos não na minha idade. 

Minha tia, Maria Campos, faleceu no último sábado pela manhã. Mainha me acordou com a notícia. Como sempre faço, a consolei com as palavras sensatas, com delicadeza e cuidado, tentando amenizar a dor que estava ali do outro lado da linha telefônica. Eram primas de parentesco e irmãs de criação, um elo muito maior do que o sanguíneo. 

Tenho lembranças muito fortes de visitá-la em Palmares, interior de Pernambuco, e observar os quartos bem cuidados, as plantas do seu pequeno quintal, sempre vistosas, de rir porque o gato se chamava “Seu nome”. Das imagens dela que mais me marcaram, ela sentada na penteadeira do seu quarto, escovando os longos cabelos prateados para prendê-los num coque. Sua pequena vaidade. 

Teimosa, turrona, ciumenta, brava. Tia Maria impunha sempre respeito nas nossas danações de criança. Cozinheira de mão cheia enchia a casa de minha infância com os cheiros das comidas de São João, fazia questão de preparar os bolos e doces de todos os aniversários. Meus primos, eu e minha irmã, sempre dávamos um jeito de comer mais brigadeiros, com a desculpa de ajudá-la no preparo. Ela sempre percebia e nos expulsava da cozinha. Adorava. 

Não era afeita a carinhos, afagos. Teve uma vida dura, mais dura era consigo. No entanto, toda a delicadeza e amor cabia nos seus trabalhos manuais, bordados e pinturas, que nos presenteava nos Natais e aniversários. Mesmo quando a visão já não ajudava e a coordenação motora não estava bem. Acarinhava assim. 

Ontem à noite, liguei para minha mãe, queria saber do velório, dela, de como estava a família. Sentei num murinho perto da mesa onde estava jantando com amigos. Enquanto a ouvia descrever tudo, de maneira tranquila, chorei. Chorei muito. Pela minha ausência, por não me despedir, mas, sobretudo, porque imaginei que em breve posso ser eu a dar estas notícias da sua partida. Quem consegue estar verdadeiramente preparado para se despedir de quem mais ama? Eu não estou. Talvez nunca esteja. 

Essa transitoriedade, essa finitude, o desapego, não estou preparada e me sinto extremamente pequena ao pensar sobre isso. Eu, que tenho sempre a palavra certa, fico sem fala. Bloqueada. Quando minha mãe um dia disse que havia feito um plano funerário e seguro de vida para ela e para nós, mudei de assunto. Não queria discutir isso. As mães deveriam ser eternas. Mas não são. Tratar o assunto de maneira objetiva, falar da morte como uma etapa da vida. Na teoria, tudo bem. Quando envolve o nosso coração, a nossa carne ali exposta, é como sal nessa ferida aberta. 

É clichê, é extremamente clichê, eu sei. Não há como evitar, posso ser eu a ir antes dela, me disse um amigo durante o jantar. É a única certeza que temos: a de que um dia todos acabarão. É também a única verdade para a qual ainda não encontro chão que apoie meus pés. Respiro fundo, acalmo o coração e decido que um dia também irei. Acho que faz parte de aceitar a minha condição de adulta, o meu processo de envelhecimento, os meus primeiros fios brancos a minha humanidade. 

Para além das discussões filosóficas e religiosas, um dia eu também findarei. Que o meu chão seja firme para que eu não caia quando precisar me despedir. Que eu me permita ter dor e desesperar, por um breve momento, ainda assim. Porque a dor é pela perda do amor, mas o amor, ah, esse nunca findará de verdade. Vai apenas se transformar. Em saudade. Em lembrança. Em uma parte de mim.
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