terça-feira, maio 06, 2008

Caminho aberto*

Estava muito bem penteado e cheiroso e sentou na cadeira do ônibus na minha frente. Uniforme de escola municipal, a mãe, sentada ao seu lado arrumava a gola a todo tempo. Do outro lado, mais duas crianças maiores, presumi serem seus irmãos, sentados conversando alto. Ele, calado, olhando pela janela. O ônibus demorou, pegou engarrafamento, as pessoas sacolejavam lá dentro e ele, parado, num mundo à parte. Fiquei imaginando o que eu pensava quando tinha a idade dele, que deve ser a mesma do meu enteado, dez anos. Eu não andava muito de ônibus naquela época, morava no interior e a maior parte dos meus trajetos era a pé. Ônibus só quando visitava a família na capital e acho que era uma aventura. Tantos prédios, tantas gentes e muitas histórias. Mas eu estava falando dele, não de mim.

A mãe puxou conversa com a moça ao meu lado, acho que vinham do mesmo lugar. Ela, dona de casa, todos os dias ia deixar os filhos na escola, aquele mesmo trajeto. Mas hoje estava demorado, o calor, as pessoas, a rua, o ar, os filhos, os vizinhos, bla bla bla. De repente ouviu a voz da menina mais velha, era hora de descer. Se apressou, pegou as bolsas e levantou. Se despediu apressada e deu sinal. Ônibus um pouco cheio, complicado para descer, ela empurrava colocando os filhos pra frente, não podiam perder a hora, estavam atrasados. O ônibus pára. Saem todos, mãe, um, dois filhos... e o garotinho que me chamou a atenção, sentado na cadeira à minha frente, olhos fixos na estrada. A mãe chamou, chamaram os irmãos. Ele, nada.

Eu levantei, desceria mais adiante. Olhei para ele, resoluto, calmo. Estava claro, ele havia decidido, não iria descer, não iria à escola. E aquilo foi tão forte, tão claro que eu nunca duvidei disso. A mãe subiu novamente no ônibus, passageros irrequietos, motorista impaciente, ela o arrastou. Fiquei de coração partido. Também queria eu ter seguido adiante, sem conhecer meu destino, apenas tendo a coragem de descobrir.

*Inspirado num garoto que vi semana passada e numa conversa que tive há tempos com ela.
Comentários:
Van,
Lembro uma vez, quando vim a passeio para Salvador, e voltei para Fortaleza. Estava tão sem destino, que saí de casa, deixando meu carro na garagem. Peguei um ônibus pro Centro, às 9 da manhã. Fiquei perambulando, pra onde o destino me despertasse a vontade de. Isso era meio de semana. Tinha decidido isso. Ninguém me puxou, eu parava onde queria, ficava onde queria. Cheguei em casa às 11 da noite.
Acho que preciso fazer isso de novo, urgentemente.
Linda essa história.
Beijo,
 
Muito bom! É, quantas vezes não me bateu um espírito errante com desejo de colocar uma mochila nas costas e conhecer o mundo. Mas aí eu lembro que o mundo de hoje parece não querer ser conhecido e desisto...
 
Gostei muito da historinha, muito significativa. Às vezes dá vontade de agir como o garotinho.
 
Vanvas, eu lembro muito dessa história, me marcou tão profundamente, que eu fiquei sem conseguir escrever sobre, sem palavras... Ainda bem que você conseguiu, lindamente. E por essas coincidências da vida, eu hoje estou me sentindo exatamente como aquele menino, largando a segurança "maternal", sem saber o que vem pela frente, mas destemida que só vendo...
 
Nesse post eu estava me sentindo lendo uma página de um livro.
Foi uma observação tão rapida, tão simples e foi escrita de uma maneira tão cativante!


PARABÉNS EIM!

amei
 
=*
 
Lindo o texto! realmente parecia a página de um livro.

Ah...como queria ter essa coragem e seguir adiante ñ sei p/ onde.
 
oI vANESSA!
quanto tempo!gostei muito desse seu texto,"caminho aberto"..mas o que é a vida senão essa porta aberta..essa dúvida que atira a gente pra lá,pra cá.."vagando em verso eu vim",o que nos resta é saltar!
um beijo no seu coração..to adicionando sua página no meu blog.
Isabel
 
Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]





<< Página inicial