segunda-feira, novembro 03, 2008

Sobre desrespeito e escolhas

Um dos meus bares favoritos em Fortaleza era o Kasa Caiada. Freqüentava o local há quatro anos e lá comemorei aniversário, despedida de amigos, saída de emprego, abertura de empresa... Ele sempre era o escolhido para ir ao fim da tarde, começo ou fim de noite, meio-dia, esperava abrir, saía quando fechava. Levei inúmeros amigos para conhecer, escrevi até resenha indicando como um dos melhores bares da cidade.

Ontem, domingo, tive um dia cheio de trabalho. Ao sair de uma longa reunião fui com Marcelo – o marido – tomar uma cerveja, comer uma besteirinha, conversar amenidades. Local escolhido, não poderia deixar de ser, o Kasa Caiada. No meio da conversa, uma senhora chegou à mesa, perguntou se poderia nos falar, assentimos e ela nos pediu ajuda financeira pois era portadora de hanseníase e diabetes e já não conseguia mais trabalhar. Não nos mostrou feridas, não as tinha pelo corpo, estava provavelmente em tratamento. No entanto foi impossível não notar suas mãos. Mutiladas, não tinha dois dedos e os outros ficaram deformados pela doença.

Quem anda em bares abertos, sobretudo como o Kasa Caiada, que possui mesas espalhadas numa praça, fica exposto e pode ser abordado pelas mais diversas pessoas. É uma escolha. Lá já me ofereceram para comprar pano de prato, pano de chão, amendoim torrado, castanha, biscuits, bijuterias, quadros, Totolec, bolinhos de goma, pão de queijo e, claro, já me pediram dinheiro ou comida. É minha escolha sentar na praça e atender ou não essas pessoas. Foi minha escolha e de meu marido conversar com a senhora portadora de hanseníase, a famosa lepra.

De nossa mesa, ela seguiu para outras e em uma delas foi interpelada com um discurso alto, aos gritos, de que ela deveria procurar a Saúde Pública para se tratar e não pedir nas mesas. Que ela estava desrespeitando as pessoas. Deveria sair dali, ir para casa e arrumar um emprego. Era uma vergonha o que estava fazendo. Ela ouviu muito quieta, deu boa noite e saiu em busca de outra mesa. O autor do discurso levantou, e mais uma vez aos gritos a enxotou da praça. Dizia que estava protegendo as pessoas que estavam no restaurante, berrava que ela se retirasse, pois ali não era seu lugar. Falava mal de todas as maneiras e humilhou a mulher.

Marcelo foi até lá, pediu que se acalmasse e falou sobre os direitos do cidadão. A praça é pública, não se pode expulsar as pessoas dela. O homem gritava que estava defendendo as pessoas e que quantas vezes a mulher ali estivesse ele a enxotaria. Ela era como um cachorro sarnento e iria transmitir a doença a todos que ali estivessem. Ora, como se 90% da população têm resistência ao bacilo de Hansen (M. leprae), causador da lepra, e conseguem controlar a infecção. Nem toda pessoa exposta ao bacilo desenvolve a doença, apenas 5%. Além do mais, indivíduos em tratamento como aquela mulher ou já curados não transmitem mais a enfermidade. O homem gritava com Marcelo, Marcelo gritava de volta. As pessoas que estavam no restaurante tiveram as mais diversas reações. Um casal da mesa ao lado fingiu que não era com ele. Um rapaz levantou e foi até o centro da discussão e pediu calma, o homem estava certo afinal, tinha mesmo que colocá-la para fora. Era uma questão de defesa. Mas de quem, perguntou. Ninguém soube responder.

Discussão encerrada. De volta à mesa descobrimos que o homem que gritava e expulsara a mulher se chama Joacir e é o proprietário do Kasa Caiasa. Pedimos a conta e um táxi. De pé já ensaiávamos ir nos apresentar a ele e informá-lo que éramos os dois jornalistas, freqüentadores do restaurante há quatro anos e que ali ele perdera dois bons clientes. Foi então que o senhor Joacir veio nos falar. Mais calmo, pediu desculpas e quis explicar a situação. Se apresentou, nos apresentamos. Ficou surpreso ao ouvir a profissão. Sempre a patente à frente dos indivíduos... Pediu desculpas mais uma vez. Contou que era militar aposentado e que andava muito estressado com os cuidados da praça e do bar. Que estava ali há 20 anos e ajudava todo mundo, mas que aquela mulher o havia tirado do sério. Que estava estressado e se descontrolou conosco e com ela. Que não era a primeira vez que a mulher incomodava os seus clientes. Pediu desculpas de novo. Depois de nos ouvir e contar vários "causos" e dramas pessoais, disse no final que iríamos dar razão a ele um dia. Estava nos defendendo. E, mais uma vez, pediu desculpas. A nós.

Fazia tempo que não me deparava com algo dessa natureza. Impotência é uma boa palavra para definir o que senti. Como defendê-la? Como mostrar às pessoas que estão erradas, que ninguém deve ser tratado dessa maneira? Como acabar com o incômodo vergonhoso que sentimos quando alguém nos aborda com uma doença, pedindo dinheiro, pedindo para lavar o vidro do carro? Como acreditar que aquelas pessoas estão falando a verdade? Até onde é exploração? Não é um problema de governos apenas, é nosso. É de minha indiferença, de minha omissão. É isso que faz com que pessoas como Joacir acreditem que estão fazendo o bem a seus clientes ao desrespeitar o direito humano, a liberdade de ir e vir. É isso que permite que ele se arvore de ser o proprietário de uma praça, que é pública, por mantê-la por causa de seu restaurante, porque é ali que ele tem lucro. E se não fosse? Ele manteria o local? Ele ainda gostaria de ser o "dono"? Precisamos mesmo ser defendidos assim?

Não freqüento mais o Kasa Caiada a partir de ontem e a quem puder alertar, o farei. Não é um boicote, é uma escolha. Como a que fiz quando decidi conversar com a mulher em minha mesa. Não quero ser defendida. Quero acreditar que posso fazer a diferença de alguma forma. Quero ter a coragem que Marcelo teve ao levantar da mesa e ir até onde pôde para defender a sua crença e a liberdade. Talvez assim pare de ter medo das pessoas e do mal que elas possam me fazer. Retribuirei com o bem, sempre. Porque ainda tenho o privilégio de poder escolher, coisa que aquela mulher perdeu há tempos.
Comentários:
Ah, Van. Muito bom mesmo seu texto. É sempre bom ler algo assim, que nos desperta, quem move a mente e nos tira um pouco do comodismo, das "nossas coisas", da protetora normalidade da vida. Às vezes, ações como a sua e do Marcelo são como pregar o evangelho ao vento, sabe. Nós, que agimos assim, somos taxados como "problemáticos", que "procuram confusão", os "inconformados". Só porque não escolhemos nos omitir. Porque seria tão mais fácil, dar o assunto por encerrado. Fico só triste e só lamento que ainda existam tantas pessoas como esse Joacir, que nos "protegem" de outros seres humanos.
 
Oi Vanessa, sou o andré santiago acho que vc ainda lembra de mim, um episodio com o Fagner..
Bem, eu nao sei ou nao me lembro ou talvez nunca estive nesse bar. Mas a verdade é que tava meio que xeretando os blogs dos amigos da Andréa e cai no seu.
Situaçoes como essa mostram como o comportamento de certas pessoas no Brasil me envergonham mas tb servem pra mostrar que o nosso pais ainda tem esperanças com pessoas como você e o Marcelo.
Beijo enorme a vc e no Marcelo.

André santiago
 
Concordo com o André, ainda bem que existem pessoas como vc e o seu marido. E pena que exista ainda tanto preconceito em torno da hanseníase. Ah! Fiz uma propagandinha da sua Mangue Comunicação lá no Efeito Pimenta!!
 
lindo texto... Fiquei triste com o seu joacir. Eu também deixaria de frequentar.
 
Oi Vanessa! Isso acontece muito por aqui.Infelizmente. Outro dia uma criança me pediu moedas e lhe ofereci um sanduiche, fui taxada de "besta". Me parece que as pessoas querem mesmo essa proteção por que lhes é conveniente. Assim, viram o rosto quando vem um deficiente, um "doente" na sua direção. Fingem dormir no trem, como se o simples fato de outrem passar por ele lhe causasse enorme constrangimento. Fico perplexa, tento fazer a minha parte, mas é complicado. Ser chamada de "encrenqueira" é o mais comum.

Obrigada pelo texto e por mostrar que nao devemos desanimar mesmo! Quem disse que uma andorinha não faz verão?
 
Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]





<< Página inicial