quinta-feira, abril 28, 2011

Uma noite em várias

Ele saiu da cozinha com uma cara estranha e disparou à queima roupa. Eu sou amargo. Comoassimamargo? Amargo. Eu entrei ali e me senti amargo. Como um velho sozinho. Triste. Mas eu não vejo você assim, disse eu apressada. É porque você é doce. Você me olha com seus olhos de maravilhas mas eu me sinto cada vez mais amargo. Pensei rápido dentro do torpor de tanto álcool ingerido naquela noite mas não conseguia dizer palavra. Só conseguia pensar que ele era a pessoa mais doce e delicada que já havia conhecido. Que ele era amargo também. Mas eu gostava. Sou capaz de saltar de qualquer altura com você. E vai sentir gosto de que? De felicidade.  Eu tenho medo. Eu também, mas eu enfrento. Língua. Céu da boca. Braços. Mãos. Salgado. Doce. Amargo. Azêdo. Árido. Azul.Vermelho. Ofegante. Preciso ir embora, vou trabalhar daqui a pouco. Consegue dirigir? Deixo você em casa. A música está tão boa. Liga quando chegar. Alô, cheguei bem. Bom dia. Bom dia para você também. Ei. Oi. Seu gosto é doce. O seu é amargo. Eu gostei. Eu também.

sábado, abril 23, 2011

Sábado de aleluia

Quando era menina, queria viver uma daquelas paixões de filme, de livro. O amor que chega e muda tudo, que transforma seus dias, que dá a liga. Cresceu, se apaixonou por uns moços que não se apaixonaram por ela. Despertou amores em pessoas para quem sequer olhou e seguiu a vida. Um dia conheceu um existencialista e se encantou pelas dúvidas e problemas dele. Casaram, viveram felizes por um tempo e infelizes por outro. Ela seguiu em busca de amores novos em corpos e ideias cada vez mais diferentes. Odiou ter assistido todos aqueles filmes de sessão da tarde nos quais as mocinhas se realizavam. Ela se encaixava em outro perfil, o das perdidas, que continuavam a buscar a felicidade, mesmo quando achava tê-la encontrado. Cansou. Desistiu de escrever e de sentir e se conformou com o torpor do vinho e das paixões súbidas e passageiras que vez em quando apareceram. Até que aquela presença a desestabilizou. Mas era tarde. Tinha desaprendido a amar, a querer amar. Fez uma piada, jogou charme com os cabelos e abriu mais um vinho. Seguiu o sábado sem aleluias e sem sinos a tocar. Estava verdadeiramente cansada.

sexta-feira, abril 08, 2011

Breve ato de não saber descrever-se com palavras

Nada do que escrevo tem a intensidade do que sinto agora. Nada do que sinto pode ser descrito por palavra. É um maremoto, é um trovão, é o chão rachado do sertão, é o olhar de minha mãe quando vou embora, é o meu calar diante da pergunta sobre como estou. É o choro guardado que precisa desaguar, é a risada mais alta que o freio do ônibus abafou na avenida movimentada. É o dizer que não me importo quando o peito está apertado. É o desejo de me trancar em casa e só ouvir o silêncio. É o desamor. É a solidão. É a cama dividida por roupas para passar. As conversas vazias nas mesas de bar. A música estridente que não consigo mais ouvir. O sofá cheio de livros. O vestido branco pendurado. A rede recolhida na varanda. As fotos dentro das caixas, as unhas descascadas e uma imensa vontade de que a paixão volte aos meus dias. Ainda preciso descobrir por onde começar.